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A interface entre a Odontologia e as torcidas organizadas no futebol brasileiro

Atualizado: 18 de out. de 2020

Autor: Lucas Berard

Mestrando em Prótese e Reabilitação Bucomaxilofacial - USP

Dentista do Santos Futebol Clube

A história das torcidas organizadas frequentemente traz à tona a atuação dos Hooligans na Inglaterra, como um símbolo do ufanismo futebolístico. O nascimento dos hooligans nunca pôde ser datado, mas foi na década de 1960 que um dos piores, mais cruéis e radicais grupos da história mundial começava a chamar a atenção.


Os hooligans não surgiram neste momento. Nem o termo. Eles são bem mais antigos, mas no futebol, tiveram seu marco inicial ali. Eram grupos de operários que se reuniam para assistir as partidas e que sucumbiam a razão à emoção: não aceitavam as derrotas de seus times e acreditavam que a força física e atos brutais poderiam ajudar o clube a vencer, pois diziam assim estar apoiando a equipe. Atos de vandalismo severo que mancharam a história do esporte bretão, naquela circunstância.


Engana-se quem acredita na exclusividade inglesa quanto à presença desses indivíduos: Rússia, Holanda, Turquia e Grécia também já foram palco de atuação desses extremistas, dentro e fora das quatro linhas.


No Brasil, a primeira torcida doravante organizada foi feminina: quando o Atlético Mineiro despontou no cenário desportivo nacional, as mulheres frequentavam os estádios com bandeirinhas e vestidas com roupas iguais para acompanhar seu time do coração em um belo mosaico. Foi aí que surgiu o termo “torcida uniformizada” e posteriormente originou-se a expressão “torcida organizada” tidas como sinônimos.


Nessa época, a violência nem passava perto dos estádios, o que significa que torcida organizada não é e não deve ser símbolo de violência. Aos poucos, torcedores passaram a organizar as torcidas para acompanhar seus times nos estádios. A primeira manifestação desse tipo – com exceção das mulheres anteriormente mencionadas – corresponde ao São Paulo Futebol Clube, em 1939. Logo em seguida, o Internacional, no Rio Grande do Sul, e o Fluminense, no Rio de Janeiro, também adotaram esse modelo.


A lógica mais contemporânea das torcidas organizadas é regida por sistemas mais complexos e polêmicos do que aqueles vividos em outrora. No contexto atual, o viés político, social e capitalista das torcidas organizadas tomou conta da paixão pelo futebol e fomentou em seus filiados a elucubração para além das arquibancadas.


A representação e o poderio dessas torcidas no tempo presente são muito maiores e diferentes do que em conjunturas passadas; aos seus integrantes são concedidas algumas regalias, como ingressos a pouco ou nenhum custo para os jogos, porcentagem de lucro com vendas de camisas e produtos do clube, acordo com dirigentes, estabelecimento de vínculos e parcerias com associações distintas, influência na contratação de jogadores e por aí vai. Essas questões estão atreladas ao “empoderamento” de algumas torcidas organizadas nos dias de hoje.


O protagonismo assumido pelos membros das torcidas organizadas poderia trazer benefícios a muitos que permeiam o futebol, mas, por vezes, perde algumas diretrizes de representatividade. A simples menção ao termo “torcida organizada” remetia à violência há pouco tempo e ainda hoje se faz presente. A exclusão e o segregacionismo proporcionados por algumas torcidas uniformizadas afetam diretamente sua própria atuação na órbita do futebol. Um maior número de participantes poderia aumentar a arrecadação e força política dessas entidades e conquistar vantagens ao próprio clube, além de favorecer a expansão e difusão dos ideais da instituição para além de seu espaço de atuação.


A Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003, que dispõe sobre o Estatuto do Torcedor - Ministério do Esporte, enfatiza o entendimento de que o esporte e as manifestações arrebatadas das torcidas não devem ser usados como catalisadores de atos violentos, mas como importantes vetores de sociabilização, de entretenimento e de promoção da saúde física e mental. O problema é que nem sempre essa diligência se faz presente: os inúmeros escândalos de violência e conflitos que terminaram em pancadaria entre os torcedores ficaram marcados e contribuíram para a proibição, inclusive de alguns jogos com torcida local e visitante presentes nos estádios em determinadas localidades, a exemplo de São Paulo, os chamados “clássicos de torcida única”, desde 2016.



Na esteira do pensamento social, o futebol é um promotor de lazer, paixão nacional e programa em família. Qual pai não se sentiu feliz e fez a alegria de seu filho ao levá-lo ao estádio para torcer pelo seu time? Quantos sonhos e saudosismos ainda perduram pelo futebol? Mas, infelizmente, a preocupação dos tempos vindouros tomou conta daquilo que no passado era uma simples distração. E isso se dá, muito em parte, por causa da violência. Não é só dentro dos estádios que as brigas acontecem; não são todos os representantes das torcidas organizadas que desonram o distintivo de alguns clubes, não é só participante de torcida organizada que promove o “quebra-quebra” e, muitas vezes, não é pelo aspecto futebolístico que as brigas ocorrem. Porém, alguns sujeitos (inclusive, bandidos) infiltrados em torcidas organizadas acabam por prejudicar outras vidas e o próprio espetáculo.

O papel da Odontologia também pode ser inserido nesse contexto, tanto pela atuação da Odontologia do Esporte quanto pela ação da Odontologia Legal. No que se refere à Odontologia do Esporte, os confrontos e confusões de alguns membros de torcidas organizadas podem gerar traumatismos orofaciais e um maior risco de lesões de cabeça e pescoço nesses indivíduos, configurando assim um possível acidente aos torcedores envolvidos. Quanto à atuação da Odontologia Legal, em casos mais trágicos envolvendo até mortes por brigas entre torcidas rivais, os peritos e Odontolegistas irão atuar em conjunto, de modo que, estes últimos serão responsáveis pela identificação humana, perícia logística e verificação de vestígios oriundos da cavidade bucal ou nela presentes.


É possível que exista um “remédio” para garantir a paz e segurança nos estádios. Erradicar as torcidas organizadas? Apenas jogos de torcida única? Apenas clássicos com torcida única? A resposta é: nenhuma das alternativas anteriores! Essas medidas talvez sejam paliativas, mas estão longe de resolver a raiz e o “ápice” do problema. Apenas a punição não é o melhor caminho a ser seguido. Em vários países onde, por exemplo, o veto à torcida de times visitantes foi adotado, as autoridades acabaram por desistir pela ineficiência da medida e por retirar de torcedores que não brigam, o direito de ir a um jogo de seus clubes.


A melhor alternativa é o investimento em educação! A punição precisa ser articulada a medidas de caráter educativo, preventivo e corretivo, de forma sistemática e permanente e não episódica. A repressão não será capaz de resolver a complexidade da questão. Torna-se relevante desconstruir a visão estereotipada e estigmatizada pelo senso comum acerca das torcidas organizadas, indo além da imagem que enfatiza a violência, a selvageria e a barbárie. Ao invés de simplesmente reprimir, é preciso antes compreender os sentidos e significados que a rivalidade assume para estes atores sociais. Sem desconsiderar a gravidade dos confrontos generalizados e premeditados entre frações dessas torcidas, é fundamental a proposição de políticas públicas preventivas, reeducativas e includentes, capazes de aproveitar o potencial de sociabilidade e os espaços associativos preexistentes, construídos de modo coletivo pelas próprias torcidas organizadas.


A paz nos estádios começa pela consciência e atuação de qualquer que seja o torcedor, desde a aceitação da torcida do time rival até a retirada do seu lixo após o jogo. Isso mesmo, quem não se lembra do episódio quando os torcedores japoneses recolheram todo o lixo das arquibancadas do Morumbi, após derrota de sua seleção para o Chile por 4 a 0 na Copa América de 2019? Um grande exemplo de cidadania.




E foram aplaudidos de pé pelos torcedores rivais. Onde há educação, há respeito! Onde há paz, não há violência!




Muitos países que são referência em níveis educacionais contam com a presença de torcedores rivais no mesmo setor em jogos de futebol. E, talvez, se os outros países forem “menos apaixonados” (se é que existe algum índice de mensuração de paixão) do que os brasileiros isso torna a necessidade ainda maior da torcida brasileira agir de maneira exemplar, seja membro de torcida organizada ou não, seja dentro ou fora de campo.

E aí, você é a favor ou contra a presença das torcidas organizadas no futebol brasileiro? Antes de responder, reflita!



 

REFERÊNCIAS


Caldas, W. (1994). Aspectos sociopolíticos do futebol brasileiro. Revista da USP/ Dossiê futebol, São Paulo, n. 22, pp. 40-49.


Hollanda, Bernardo. B. B. de. 2014. “Torcidas, ultras e hooligans: paralelos da problemática torcedora no Brasil e na França”. In: Hooliganismo e Copa de 2014. (Org.) Bernardo Borges Buarque de Hollanda, Heloísa Helena Baldy dos Reis. Rio de Janeiro: 7 Letras, pp.145-158.

Hollanda, Bernardo B. B. de; Medeiros, Jimmy; Teixeira, Rosana da C. 2015. A voz da arquibancada: narrativas de lideranças da Federação de Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras.


Da Câmara Teixeira, Rosana; De Hollanda, Bernardo Borges Buarque (2016). Espetáculo futebolístico e associativismo torcedor no Brasil: desafios e perspectivas das entidades representativas de torcidas organizadas no futebol brasileiro contemporâneo. Esporte e Sociedade.


Murad, Maurício. 1996. “Futebol e violência no Brasil”. In: Discursos Sediciosos. Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, [n. 1], pp.100-214.

Rondinelli, Paula. "Torcidas Organizadas"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/educacao-fisica/torcidas-organizadas.


Teixeira, Rosana da C. 2003. Os perigos da paixão: visitando jovens torcidas cariocas. São Paulo: Annablume.


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